Criar uma Loja Virtual Grátis

A larva

A larva

Rubén Darío

Tradução: Paulo Soriano

 

            Porque falávamos de  Benvenuto Cellini,  e alguém sorriu da afirmação,  que fez  o grande artífice em sua Vida[1],  de  ter visto uma vez uma salamandra,  Isaac Condomano  disse:

            –  Não riam. Eu lhes juro que vi, assim como  estou vendo  vocês,  se não uma salamandra, ao menos uma larva ou uma taquarinha.

            “Contarei o caso em poucas palavras.

            “Eu nasci em um país em que, como em quase toda a América, se praticavam  feitiçarias, e os bruxos se comunicavam com o invisível.  O mistério nativo  não desapareceu com a chegada dos conquistadores.  Ao contrário, aumentou na colônia, com o catolicismo, o costume de evocar as forças estranhas, o demonismo, o mau-olhado.   Na cidade em que passei os meus primeiros  anos,  falava-se, eu bem me lembro,  como coisa trivial, de aparições diabólicas, de fantasmas e de duendes.  Numa família pobre, que vivia na vizinhança de minha casa, ocorreu, por exemplo, que o fantasma de um coronel peninsular apareceu a um jovem e revelou um tesouro enterrado  no pátio.  O jovem morreu devido à visita extraordinária, mas  a família ficou rica. Um bispo apareceu a outro bispo  para indicar um lugar onde se encontrava um documento perdido nos arquivos da catedral.  O diabo carregou pela janela uma mulher, em uma casa que eu  tenho bem presente. Minha avó me assegurou  a existência noturna de um frade sem cabeça e de uma mão peluda e  enorme que  aparecia sozinha, como uma infernal aranha.   Tudo isso eu aprendi  de ouvir dizer, ainda criança. Mas o que eu ouvi, o que eu  apalpei, foi aos quinze anos; o que eu vi e apalpei do mundo das sombras e dos arcanos tenebrosos.

            “Naquela cidade, à semelhança de certas cidades provincianas espanholas,  os habitantes fechavam as portas às oito, ou, ao mais tardar, às nove horas da noite. As ruas ficavam solitárias e silenciosas.  Não se ouvia mais que o ruído das corujas aninhadas nos beirais, ou o latido dos cães nas lonjuras dos arredores.

            “Quem saísse à procura de um médico, de um sacerdote,  ou  para  outra urgência noturna, tinha que seguir por ruas de pavimento pedregoso e  cheias de buracos, alumiado  apenas por lampiões de petróleo que,  fixados nalguns postes,   deitavam a sua escassa luz .

            “Às vezes ouviam-se ecos de música ou de cantos.  Eram serenatas à moda espanhola: árias e romanças que, acompanhadas pelo violão, expressavam as  ternuras românticas do namorado à amada. Tais variavam desde  um só violão e o namorado  sozinho, de poucos meios,  até um quarteto, septeto, ou  mesmo uma orquestra completa  com    piano, como  o fidalgo endinheirado  fazia soar  sob  as janelas da dama de seus desejos.

            “Eu tinha quinze anos, uma grande ânsia de vida e de mundo.  Uma das coisas que mais ambicionava era poder sair à rua e ir com  a gente dessas serenatas.  Mas, como fazê-lo?

            “A tia-avó que cuidava de mim em minha infância, após rezar o rosário,  tinha o cuidado de correr toda a casa, trancar bem as portas,  guardar   as chaves e deixar-me bem deitado  sob o sobrecéu de minha cama.  Um dia, porém, soube que à noite haveria serenata. Mais ainda: um de meus amigos, tão jovem quanto eu, assistiria à festa, cujos encantos me pintava com as mais tentadoras palavras. Todas as horas que precederam aquela  noite, passei inquieto, somente  a pensar  e  preparar   o meu plano de fuga.  Assim, quando as visitas de minha tia-avó partiram – entre elas um cura e dois licenciados,  que  vieram para conversar sobre política  e jogar uíste ou voltarete –,   uma vez feitas as orações, e estando todos deitados, pensei apenas e pôr em prática o meu plano de furtar uma chave da venerável senhora.

            “Passadas umas três horas, isso pouco me custou, pois sabia onde as chaves eram guardadas  e, além disso, ela  dormia como um bem-aventurado.  Tendo alcançado o que buscava,  e sabendo a que porta a chave correspondia, consegui sair à rua, no momento em que, ao longe,  os acordes de violinos, flautas e violoncelos começavam a soar.  Considerei-me um homem. Guiado pela melodia, logo cheguei  ao lugar onde  ocorria a serenata. Enquanto os músicos tocavam, o público tomava cerveja e licores.  Depois, um alfaiate, tomando ares de  tenor,  entoou primeiro   A la luz de la pálida  luna, e, em seguida, Recuerdas cuando la aurora... Entro em tantos detalhes para que vocês vejam como se me fixou na memória tudo o  que aconteceu naquela  noite, a meu ver extraordinária.  Das janelas de Dulcinea, resolvemos  ir às outras. Passamos pela  praça da Catedral.  E, então...  Disse que eu tinha quinze anos, estava nos trópicos, e despertavam em mim, imperiosas,  todas as ânsias da adolescência...

            “E na prisão de minha casa, de onde saía apenas para o colégio, e  com aquela vigilância, e com aqueles costumes primitivos... Eu ignorava, pois, todos os mistérios.  Assim, qual  não foi a minha satisfação quando, ao passar pela praça da Catedral, acompanhando a serenata, vi  sentada, numa calçada,  envolvida em sua  mantilha,  como se entregue ao  sonho, uma mulher! Parei.

            “Jovem? Velha? Mendiga? Louca? Que me importava! Eu ia  em busca da sonhada revelação, da aventura  desejada.

            “As pessoas da serenata se afastavam.

            “A claridade dos lampiões da praça chegavam escassamente.  Aproximei-me. Falei com ela; não direi que com palavras doces, mas com palavras fervorosas e  urgentes. Como não obtivesse resposta, inclinei-me e  toquei o ombro daquela mulher que não queria responder-me, e fazia o possível para que eu não lhe visse o rosto. Fui insinuante e altivo. E,  quando cria ter alcançado a vitória, aquela figura voltou-se para mim, descobriu o rosto e... Oh, espanto dos espantos!  Era  viscosa e desfigurada aquela face. Um olho pedia sobre a maçã ossuda  e purulenta. Algo  como o ú

mido  bafio de putrefação chegava a mim.  De sua boca horrenda,  saiu como  que um riso rouco; e,  depois, produzindo  o mais macabro dos esgares,    aquela ‘coisa’ emitiu  um ruído que se poderia dizer assim:

            “– Kgggggg!...

            “Com o cabelo eriçado, dei um grande salto, lancei um grande grito, clamando por socorro.

            “Quando chegaram os companheiros de serenata, a  ‘coisa’ havia desaparecido.

            “Dou-lhes a minha palavra de honra”, concluiu Isaac Codomano, “que  tudo o que lhes contei é absolutamente verdadeiro.”

 

 



[1] Referência  à autobiografia do escultor e escritor italiano Benvenuto Cellini (1500-1571),  na qual se mesclam  eventos verdadeiros e fantasiosos. (N. do T.)