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Viva o Povo Brasileiro

Viva o Povo Brasileiro

A abertura de “Viva o Povo Brasileiro”  é uma metáfora que  sintetiza o espírito do magistral romance de João Ubaldo Ribeiro,  uma longa narrativa satírica e não linear,  que  percorre quatro séculos de história do Brasil (1647-1977).  O leitor é, de início,  apresentado a uma pintura  patriótica, pomposamente   denominada  “O Alferes Brandão Galvão perola às gaivotas”. Nela se reproduz  a morte  gloriosa  do heróico  Alferes, em plena flor da mocidade, atingido por  projéteis  lusitanos, antes mesmo de conhecer mulher.  Mas, logo adiante,  fica-se a saber   que o Herói da Independência  não é mais que  um pescador adolescente, pobre e inculto,   que sequer sabia o que significava a palavra ‘alferes’, e que jamais poderia imaginar-se alvejado ao espiar, da Ponta da Baleia, na Ilha de Itaparica,  a aproximação da  frota inimiga.

            O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.  A versão oficial, excelsa  e grandiloquente,  é quase sempre uma fraude perpétua; a verdadeira história – se é que ela existe – é fugaz e enevoada,  e reside nas vicissitudes  fugaz dos  anônimos, dos pequenos e  passageiros  oprimidos.  

            É na contraposição entre a história oficial – e, portanto,  deturpada -  e a nebulosa verdade popular –  perigosa, pois –,  que se alternam os personagens: aqui, o ambicioso Perílio Ambrósio, futuro Barão de Pirapuama, para encenar a heróica  e lucrativa  participação na guerra de independência da Bahia,  que lhe renderia grande fortuna, empapa-se no sangue de um escravo que  acabara de matar;  ali, Amleto Ferreira, homem  já  bem rico, por conta dos  bens ilicitamente surrupiados ao patrão,  que lhe devotara toda confiança,    renega   a origem africana, e, com emprego de documentos falsos, renasce como  burguês  puro-sangue, rematando com brio uma gloriosa ascensão social.

            Mas é da boca do cego Firmino, que nunca lera  ou escrevera  qualquer coisa na vida, mas que sempre ouvira e tateara  melhor do que ninguém,  que vem um quê de  desmistificação:  a História não é a que está nos livros, até porque aqueles que os escrevem são quase sempre mentirosos.  Toda a História é falsa ou meio falsa.  Poucos livros, assim como as pessoas, devem ser dignos de confiança:  “A História feita por papéis deixa passar tudo aquilo que não se  botou no papel e só se bota no papel o que interessa.”

            É por isso mesmo  que João Ubaldo, discípulo fiel da própria personagem que concebeu,  não hesita em entornar no papel  justamente aquilo que a  História  deixou de lado, por pura conveniência e oportunidade.   Eis aqui a essência do romance.

            Ubaldo nos faz lembrar que todo povo precisa de Heróis para cultuar. Uma nação não se forja – ou se erige, conforme o caso –  sem  que eles, os Ilustres da Pátria,  nos dignifiquem. Sobretudo as novas nações, produto da ganância das antigas.  Os  Heróis são uma necessidade imanente e congênita na formação de qualquer povo, moço ou velho.   Se a Pátria não dá à luz a eles,  que sejam inventados. Os verdadeiros heróis, todavia, quando de fato existem,   são  obrigatoriamente  anônimos e esquecidos.  Mas, nem por isso, menos necessários, já que é deles, e  assim  espontaneamente, que  brota  e se encorpa o sincero  sentimento de  uma possível  nacionalidade.

             O fato de serem imaginárias as personagens ainda mais  sedutora torna a impressão de que o  romance de João Ubaldo é a representação da anti-História brasileira; e, por isso mesmo, bem mais fidedigna que aquela, a oficial,  da qual é um contraponto jocoso.  Do invasor flamengo  ao sagaz  índio interessado em comer-lhe a carne tenra e saborosa;   da escrava violentada pelo português facínora  ao liberto que cresce  um pouquinho mais  na vida;  do misticismo exótico dos caboclos à resistência homérica dos homens da Irmandade da Casa da Farinha, o que  resulta de “Viva o povo Brasileiro"  é bem mais que uma narrativa entrecortada por episódios que avançam e recuam no tempo, em busca de uma unidade.  Sob a batuta mágica  e  tranqüila   de um narrador exuberante, embriagado  de fina e envolvente  ironia, tem-se muito mais que a costura de um mosaico.  O romance de João Ubaldo é,  essencialmente, um retrato de  um protagonista só.  Todas as personagens,  por mais díspares e inconciliáveis que  sejam, se fundem e se confundem. No tumulto e na torrente dos séculos, formam (ou deformam) apenas  uma única pessoa:  o povo brasileiro,  engendrando e construindo  a própria personalidade, da qual João Ubaldo Ribeiro é um biógrafo fiel, e, ao mesmo tempo, um  simples observador,  cínico e  bem-humorado.