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A fagulha escarlate

A fagulha escarlate

 

 

Bem que tentamos dissuadir o juiz de tão grande desvario, mas nos rendemos ao seu enorme senso de justiça e à sua compaixão ilimitada. Este foi o seu grande erro e, certamente, a nossa suprema desgraça. Pode parecer um grande paradoxo, mas, muitas vezes, uma justiça bem aplicada pode ser a fonte de infortúnios bem maiores, e de consequências bem mais devastadoras, que uma injustiça empregada com parcimônia, sobretudo quando esta é premente e inevitável.

 

Antes, tentamos esconder, sem sucesso, o jovem Rúfus dos olhos lânguidos e compassivos do juiz. Era ele um homem sereno, ao que parece não assim de todo culto, talvez ainda menos destro nos tortuosos labirintos dos saberes jurídicos, mas era dotado de uma tão natural propensão à equidade, que o seu inabalável senso de justiça lhe conferia uma aura oracular, de santidade. Mantinha sempre um ar pensativo, um tanto distante e profético, que se tornava mais ainda carregado de melancolia quando o magistrado metia a pena no tinteiro, ao sentenciar. Depois, cumprida a sua missão, recolhia-se num silêncio misterioso, e ali víamos que a calma e a serenidade do julgador talvez resultassem não de um temperamento inato, mas de uma angústia profunda, fruto de experiências dolorosas, que lhe tolhia qualquer expansão além da necessária.

 

Todavia, quando soube da existência de Rúfus e, bem assim, dos motivos de sua reclusão, o melancólico juiz pôs em arco as sobrancelhas adormecidas e, lançando um olhar furioso ao interlocutor, exclamou:

 

- Calhordas ignorantes e supersticiosos! Como se faz isso a um doente mental? Juras, pelo que há de mais sagrado, que o que me contas é verdade?

 

- Senhor – respondeu o velho cura -, dou a minha palavra, já que o Cristo não permite que juremos, sequer, por um fio de cabelo.

 

- Por que não denunciaste, há mais tempo, o caso às autoridades civis?

 

- Bem o fiz, mas o juiz ancião, que te antecedeu, protegido da Corte, não me dava ouvidos.

 

Rúfus era um adolescente de catorze ou quinze anos. Filho de uma prostituta que morrera ao dar-lhe à luz, o nosso recluso já nascera idiota; mas não sabemos se por desgraça da sífilis, ou em consequência de um fórceps mal aplicado pelo dr. Rivera, um rude cirurgião de mãos sujas que cheirava - e ainda cheira - a aguardente de uvas.

 

Mas não penseis que era a pura idiotia a causa de seu cárcere privado. Naqueles olhos nebulosos, que quase sempre miravam, estáticos, o mesmo ponto perdido nos confins do infinito, havia uma chama letal e bem recolhida. Uma fagulha escarlate, em estado de latência, ocultava-se sob as pupilas mortas do pobre rapaz. É nosso dever admitir que o braseiro permanecia em constante repouso, mas que nem por isso era menos perigoso, porquanto nunca sabíamos quando, numa explosão de incandescimento súbito, ele viria se manifestar, em frenética ebulição.

 

É bem terrível, não negamos. Mas, ainda que raramente, Rúfus abandonava o estado cataléptico, e, de olhos inflamados, lançava--se à rua. O seu faro era certeiro: desde a mais tenra infância, Rúfus nunca se equivocava. Aquele a quem se atirava, com uma sôfrega necessidade de carinho, estaria, em breve, e irremediavelmente, sepultado em sua cova.

 

Não sabíamos se eram mesmo proféticos os arrebatamentos de Rúfus. Melhor dizendo: não sabíamos se ele adivinhava ou causava a morte de quem, aos borbotões, mendigava e dava afeto. Mas era difícil acreditar que uma criatura tão inocente, quando despertava de seu transe eterno, pudesse provocar a morte de quem quer que seja, especialmente porque aos falecimentos eram atribuídas causas naturais, resultantes de colapsos ou síncopes fulminantes. Esta era a opinião – muito contestada, diga-se de passagem – do dr. Rivera, que, sem outra explicação ao fenômeno, achava que as manifestações de Rúfus eram uma versão moderna do canto do cisne dos antigos.

 

Tirado, como por encanto, da letargia, Rúfus punha o povo em polvorosa. Ele corria à rua com um sorriso - semelhante a um esgar - encrespado nos lábios e, com a cabeça pendente, e os olhos atirados para cima, passava indiferente, como um cego baboso, por todos nós. Mas, se parasse diante de alguém, e lhe estendesse os braços agitados, para um abraço amoroso, não havia dúvida que o escolhido de seus afagos jamais veria novamente a luz do sol. Aliás, nos últimos tempos, os surtos de “lucidez” do idiota eram cada vez mais frequentes; e assentíamos, assustados, que o lapso decorrido entre o abraço profético e o fenecimento inexorável se estreitava a olhos vistos.

 

Foi por isso que resolvemos, há quase um bom lustro, acorrentá-lo a uma coluna grega que servia de pórtico a um mausoléu abandonado, mas apto à nova serventia. De Rúfus cuidava uma velha senhora andaluz, que não temia a morte. Dava-lhe água e alimento, e, ao cair da noite, punha-o a dormir no interior do amplo sepulcro, sob lençóis carcomidos.

 

A sentença do novel juiz exigia presto cumprimento, e não havia como olvidá-la. Rúfus foi posto em liberdade. Não poucos, com medo de seus afagos, abandonaram a comarca, e houve mesmo, entre nós, quem cogitasse de matá-lo. Embora livre dos grilhões, Rúfus passava o dia deitado à sombra da amoreira, entre a Igreja de São Francisco e o campo santo, a poucos passos da vivenda miserável onde morava a sua benfeitora, a velha mulher a quem coubera judicialmente – e não haveria outra escolha – a guarda do infeliz.

 

Certo dia, os olhos de Rúfus emprenharam-se do velho brilho escarlate, e todo o seu afeto foi despejado justamente na mulher andaluz que o alimentava. A velha morreu menos de uma hora depois, vítima dum violento ataque do coração.

 

O destino de Rúfus estava selado; ninguém se atrevia a aproximar-se dele. O jovem, atirado à própria sorte, definhava de fome e de sede.

 

Movido de compaixão, o juiz resolveu recolhê-lo, tendo em mente uma urgente internação na casa de misericórdia.

 

Mas Rúfus já agonizava no relvado, ainda sob a sombra da amoreira, donde não mais saíra, desde a morte da anciã, encerrado na mais profunda e silenciosa idiotez.

 

O juiz, ladeado por dois meirinhos arregimentados da comarca vizinha, que margeia o Tambre – os do lugar não se atreviam a fazer tal escolta –, inclinou-se sobre o rapaz. Surpreso, viu duas breves chamas róseas assomarem nas pupilas negras do garoto. Parecendo sorrir, o idiota lançou um último olhar agarimoso ao magistrado, que, num intuitivo reflexo repulsa, tentou se esgueirar do abraço talvez profético, talvez fatal.

 

Mas era tarde.

 

O que se viu, instantes depois, a desenhar-se contra o chão coberto de relva, foi a silhueta dum amplexo frouxo, a cingir um jovem morto e infeliz ao cadáver de um juiz reto e piedoso.