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PRETIUM DOLORIS

PRETIUM DOLORIS

Quando ligaram da escola, informando-o de que Eleutério havia morrido há poucos minutos,  Barroso pôs-se a calcular o quanto aquele feliz  infortúnio lhe renderia. Ponderou que seria uma boca a menos, o que era razoável.  Levou em consideração o relevante aspecto de que as despesas  com o colégio eram significativas e que estar livre delas era como assenhorear-se  de uma pequena pensão. Avaliou que não mais precisaria deixar  uma soma substancial no ortopedista a cada três meses, nem custear outra operação.  Estava, assim, satisfeito. Se soubesse que o aleijadinho  idiota iria morrer assim, de uma hora  para outra (igualzinho à mãe, o cretino!), teria feito um seguro de vida do qual seria o beneficiário.  

 

Mas, como não tinha bola de cristal, não poderia  culpar-se  por isso.  Barroso estava contente. E muito mais contente ficou quando, alcançando   um caderninho de anotações, verificou, na ponta aguçada do lápis,  a real extensão de seus ganhos. Mas o sorriso de satisfação congelou-se na face. Porque as despesas do funeral vieram-lhe à mente como um visitante súbito e indesejado.  Um choque elétrico não faria pior.  Barroso bufou,  seriamente contrariado. Sua alma afogou-se em tumultuosas preocupações. Não havia como evitar aquele dispêndio. E isto o martirizava, deixava a  sua alma aflita e atribulada.  Tentou, então, depois de muitas excogitações angustiantes,  apaziguar os ânimos.  Buscou, em vão, convencer-se de  que, em breve, recuperaria o dinheiro enterrado juntamente com o filho imbecil.  Mas se consolou  um pouco quando, deixando, a muito custo,  as  cifras de lado, intuiu que a morte de Eleutério era um imenso fardo que removia  das costas. Nunca suportou o garoto.  Não por outro motivo,   impingiu-lhe um nome tão desagradável.

 

Somente quando foi chamado à delegacia de polícia, soube Barroso de algo maravilhoso. O automóvel bendito, que atropelara o garoto, num oportuno  avanço de sinal vermelho, pertencia à TRANSPAR  S/A, uma poderosa empresa de transportes urbanos.  Todo o seu mau-humor evaporou num segundo.  A  muito custo, reprimiu um sorriso de extrema alegria. Na hora agá, urgentemente, Barroso convolou o sorriso num arremedo de esgar, na esperança de  desfigurar a face,  de  nela  esculpir   uma profunda dor, uma inconsolável tristeza pela morte do filho único, um bom garoto que tivera a amarga  sorte de nascer deficiente, uma criança adorável que calhara ao Deus misericordioso arrebatar-lhe tão cedo! Se, na delegacia,   ninguém deu   crédito ao  improvisado – e burlesco – simulacro de tristeza, o mesmo não se pode dizer quanto ao impacto causado pela farsa que encenou  na   audiência judicial.  Barroso era esperto e  deteve-se a ensaiar demoradamente  o  olhar pesaroso e desconsolado afundado numa face constrita,   esforçada pela decadência  da  barba por fazer; os lábios trêmulos e levemente crispados, sulcados de amargura; os ombros retraídos sob  o paletó  amarrotado e  puído; as mãos involuntariamente contorcidas, que,  por vezes, cobrem o desespero de uma face  deformada  pela dor cruciante; o  alheamento; os súbitos vazios da memória; os cabelos revoltos; o  movimento pendular da cabeça decaída, lento e desolado; a desesperança  de um  homem de bem que perde um filho e espera um lenitivo, já que dinheiro algum no mundo é capaz de trazer o seu garoto de volta...

 

 

Como não cairia bem, nas circunstâncias, regatear o preço de sua dor, e como a indenização oferecida pela empresa não poderia, após a  sua irrepreensível  interpretação na ribalta jurídica,  deixar de ser expressiva, Barroso assinou o acordo na  mesa de audiência. Nada de recursos  protelatórios. Tudo cash. Coisa boa essa história de danos morais.

 

Soube, dias desses, que Barroso montou negócio novo e que está muito bem de vida. Está de mulher nova  e já teve um filho com ela.  Mas, dessa  vez,  Barroso foi mais cauteloso.  Fez seguro de vida para o garoto e indicou a si mesmo como beneficiário.

 

 

 PAULO SORIANO,  em 05/03/2008