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Círculo Vicioso

Círculo Vicioso

RCULO VICIOSO

 

1

 

O HOMEM QUE AMAVA A NOITE

 

Quando o sol já ia alto no céu, e espraiava na atmosfera sudorosa um  calor angustiante, que a luminosidade difusa tornava ainda mais intenso, os sonhos magníficos do velho Max desvaneciam, convolavam- se em vapor, e,  após condensarem-se no ar como se fossem nuvem, dissolviam-se  em  tênues  filamentos,  até  se  perderem  de  todo  nos escaninhos da realidade inclemente.

Era  duro  ver  o  velho  Max  despertar  para  um  novo  dia  de mendicância,  com  a  mente  ainda  impregnada  de  belos  sonhos,  e descobrir-se miserável e infeliz. Porque, quando a noite chegava, e o velho Max se recolhia a um nicho enquadrado nos alicerces de um velho viaduto, uma bênção descia sobre o ancião – uma bênção pela qual ele ansiava a cada  segundo vagaroso do dia interminável. Com a noite vinham os sonhos maravilhosos, nítidos como a luz solar, nos quais o velho esmoler simplesmente esvanecia e, da palpável substância de seus sonhos, erguia-se, qual uma fênix, um homem jovem, rico e poderoso. Max, o ancião indigente, tornava-se um ambicioso e feliz magnata.

Sim,  esta  é  a verdade. Quem o via  à noite,  em  sono  solto, compartilhando  miseravelmente  com  as  ratazanas  os  dois  metros quadrados de sua caverna de concreto, não podia supor as delícias que inundavam aquela alma adormecida. Porque, interiormente, o velho Max

– o velho e rancoroso esmoler – não mais existia. O que existia era o outro Max, um homem de quarenta anos, astuto e inteligente, que, de seu aparelho celular, comandava uma empresa portentosa. Um homem que possuía todo o  dinheiro do mundo e muito mais. Que podia ter nos braços voluptuosos o corpo de qualquer mulher. Que degustava vinhos seculares. Que  experimentava,  intensamente, a cada dia, as poucas e deliciosas horas consentidas por um Deus benévolo e fiel.

Assim, agradecido aos céus pelo negrume da noite, Max recolhia-

se à aspereza úmida de sua cova de concreto e, com o coração prenhe de alegria e alucinadas expectativas, se punha a sonhar...

 

 

 2

 

O HOMEM QUE AMAVA O DIA

 

... Ele era um homem rico e poderoso. Os seus domínios eram imensuráveis  e  a  sua  influência  fazia-se  notar  em  cada  canto  do mundo. Vivia cada hora do dia febrilmente e parecia extremamente feliz. Mas vibrava, na superfície de seu olhar, uma sombra de tragédia. Quando o  sol mergulhava nas entranhas da terra, quando a noite impunha o seu pungente e inexorável negrume, o homem estremecia.

Não  era  difícil  perceber  os  efeitos  deletérios  que  a  noite

produzia no espírito daquele homem. Os seus amigos mais íntimos viam,  com compaixão, a tragédia enegrecer-lhe de vez as pupilas,

enquanto dele apoderava-se uma melancolia inefável, uma angústia tão profunda que nem a riqueza e nem a influência podiam aplacar.

É que, à noite, minavam de seu cérebro entorpecido aqueles tétricos  sonhos.  Sonhos  cuja  nitidez  e  coerência  sobrepujavam  a lógica inflexível da própria realidade. E o rico homem, ao adormecer, cumpria a sua pena. Porque, em seus terríveis sonhos de pedra, Max era um ancião  andrajoso, enrijecido pela artrite e carcomido pela fadiga, cuja triste  figura assomava dos alicerces fuliginosos de um antigo viaduto para, sob um sol impiedoso, ansiar o advento da noite e esmolar o pão de cada dia.