Para Luciano Barreto
A bala que esvaziou Adamastor de vida, no preciso momento em que o Sol inundava de sangue a Baía da Guanabara, veio do tambor quase todo descarregado de um Taurus calibre .38 Special. O dedo pressionara o gatilho com tanto ímpeto que a arma sequer oscilou quando o corpo do suicida desmoronou sobre o carpete verde-musgo.
Antes de atirar, Adamastor experimentou, pela primeira vez, a incerteza. Uma torrente assustadora de arrependimento e vergonha adernou a sua alma, mas o homem reprimiu violentamente a nauseante sensação, com um movimento presto e resoluto. O céu já era coágulo quando o sangue esguichou de sua têmpora direita.
Acabara de matar a própria mulher. Mas a morte de Teresa fora odiosa. Decepcionante.
Quando entrou no apartamento, há menos de cinco minutos, Adamastor já tinha em mente tudo o que faria. Em sua imaginação, travaria um curto diálogo com a mulher que um dia amara profundamente:
- Por quê? Por quê, Teresa?
Esperaria que ela, surpresa, recuperasse o fôlego perdido, e, então, desesperada, murmurasse, num fiapo de voz:
- Foi sem querer... Juro... Foi sem querer.
Então, sobretudo porque aquela mulher imploraria pela própria vida, já se via sacando o Taurus do quadril e disparando quatro vezes. A última bala – a última e mais importante – guardaria para si, porque um prêmio justo e merecido.
Adamastor não era exatamente (exuberante em) ira. Nem era somente uma honra ultrajada. Adamastor era, também – e especialmente –, a trágica poesia daquele súbito desfecho.
O amante traído chegou mesmo a bradar:
- Por quê? Por quê, Teresa?
Mas o desenrolar dos acontecimentos se deu de forma bem diversa, como sempre sói acontecer aos espíritos imaginosos. Ao brado de indignação não se seguiu espanto ou desespero. Não havia uma Teresa subjugada pelo opróbrio. Havia uma Teresa fria e altiva. Nem uma lágrima rolou de olhinhos marejados de angústia e humilhação.
Horrorizado, Adamastor foi surpreendido por um sorriso desafiador. Um sorriso repulsivo, de puro escárnio.
- Por quê? Porque você mereceu.
Toda poesia esvaneceu. O que conduziu o indicador ao gatilho não foi a trágica nobreza de um homem aviltado em sua honra. O heroísmo cedeu à fúria impensada, à cólera inconsequente. Foi o ódio imotivado, puro e simples, quem girou o tambor três vezes.
Teresa, em nenhum momento, temeu a morte.
Adamastor compreendeu que não valeria à pena rematar todo o drama com uma bala na cabeça. A causa justa e nobre cedera lugar ao impulso torpe e vulgar. Não era um herói que morria. Era um bruto. O mais desprezível dos homens. Mas já fora longe demais. Não havia retorno.
A ele foi possível, sim, imaginar a verdadeira reação de Teresa. Tal aconteceu pouco antes de tocar a campainha. Como uma estrela cadente, uma sugestão riscou os seus escombros noturnos, mas a passagem foi rápida demais para deixar alguma impressão naquela ilusão de alma. Durasse mais um pouco a sensação e Adamastor teria girado nos calcanhares. Teria ido embora sem deixar um rastro sequer.
Mas, ao transitar pela Whashington Luís, a caminho do apartamento em Duque de Caxias, a única possibilidade que ele podia divisar era a de uma Teresa pálida, inerme, balbuciante. E tanto insistiu nessa imagem que foi a que prevaleceu e sufocou o lampejo da verdade redentora que eclodira à porta do apartamento.
Naquela manhã, Teresa não sabia que aquele seria o seu último dia dia. Recebeu enfadada o amante no apartamento, como ultimamente fazia quase todos os dias, pouco antes de dar aulas particulares de um inglês estropiado. No que se saiu muito bem, farsante que era.
Entrementes, ao preparar o café da manhã, Adamastor já sabia que morreria ao pôr do Sol. E de fato morreu. Mas as coisas não evoluíram como ele imaginara. Deram-se bem ao inverso: um fim heroico para ela; uma morte humilhante para ele.
Nada mais.