Os cinco presentinhos

Os cinco presentinhos

OS CINCO PRESENTINHOS

 

Talvez a minha natureza melancólica, por si só, já fosse suficiente a me fazer sentir,  com  intensidade maior que a vossa,  a angústia  subjacente às mais alegres noites de Natal.   Todavia,  não há dúvida que essa exacerbação sensível se deve, em grande parte, ao fúnebre acontecimento da noite de 24 de dezembro de 1878.

Eu tinha então apenas nove anos de idade e era o primogênito de uma família pobre e numerosa.

Meu pai era mineiro de carvão da região de  Mons e a minha mãe falecera ao dar à luz à pequena  Louise. Por esta época, eu já era empregado na mina de Pâturages  e passava o dia todo me esforçando  sobre os trilhos,  a empurrar os vagonetes  carregados de hulha. Mas, quando minha mãe morreu, tive de abandonar o serviço para cuidar da recém-nascida e de outros quatro irmãos menores. Um salário miserável a menos, uma boca esfomeada no lugar de outra.

Porque éramos muito pobres, jamais havíamos recebido um presente de Natal.  Mas, naquele ano, o meu pai, ao retornar da mina, mais limpo do que nunca,    trazia nas mãos cinco presentinhos,   embrulhados em papel colorido,  e atados em cordões dourados, salpicados de neve.  Acompanhava o meu pai um pregador holandês, um jovem homem de cabelos ruivos e olhar tempestuoso.

Sem tirarmos os olhos dos presentes, ouvimos, impacientemente,   o missionário ler, com sincera devoção, um trecho da Bíblia. 

Durante a leitura, o meu pai mantivera fechados os olhos tristes.  Supus que ele ouvia mais os próprios pensamentos que as palavras de Deus, porque foi preciso que o pregador holandês o tocasse nos ombros para que ele despertasse do profundo devaneio.   Mas eu estava enganado. Hoje tenho toda a razão para crer que ele escutara atentamente esta passagem:

 

"Tendes ouvido o que foi dito: ‘Amarás ao teu próximo e aborrecerás ao teu inimigo’. Mas eu vos digo: Amai os vossos inimigos, fazei bem ao que vos odeia, e orai pelos que vos

 

perseguem e caluniam...".

 

- Coragem, homem – disse o missionário. – Deus não te deixará desamparado.  Não penses assim. Apesar da grave crise, teus filhos não morrerão de fome.  Nem de frio.

Somente  depois soube  a razão daquele gesto consolador: engrossando  a espessa  legião de mineiros desempregados, e sem a mínima possibilidade de obter um novo serviço,  meu pai  havia sido sumariamente  despedido.

O pregador holandês tirou os sapatos e os entregou a meu pai.

- É um sapato novo. É a primeira vez que eu o uso.  Mas agora é teu. É um presente de Natal.

Meu pai não conteve as lágrimas. Abraçou-se ao Sr. Vincent van Gogh  e chorou convulsivamente.  O missionário  holandês o consolou como podia e depois partiu, mergulhando os pés nus na neve  gelada, que se acumulava nos caminhos. Certamente,  doara as meias novas a outro necessitado. Para nós, um nobre ritual de um batavo ensandecido.

Então meu pai distribuiu os presentes.  Eram todos iguais: fatias de um bolo  mofado e delicioso, que comemos  com muita fome e maior gula.  Aquela noite, para mim e para os meus irmãos menores, parecia a mais feliz de nossas  existências miseráveis.  Era a primeira vez que ganhávamos presentes.  Era a primeira vez que comíamos um bolo. Era a primeira vez que o Natal fazia algum sentido para  nós.

Havia em meu pai,  que nos via comer com tanta alegria e prazer,  uma satisfação honesta.  Ele  estava feliz e orgulhoso  por nos proporcionar este momento de sublime felicidade.  É por isso que eu não sabia decifrar o motivo daquelas lágrimas pesadas e silenciosas que ele, serenamente,  evitava reprimir, como se elas fossem, as lágrimas mesmo, naquele momento, a sua única fortuna e sua  única necessidade.

Fazia frio. Meu pai nos pôs a deitar.  Beijou-nos um a um. Abençoou-nos.  Abraçou-se a cada um de nós demoradamente.

-Nem fome, nem frio – disse-nos,  um a cada vez,  enquanto engolia   um derradeiro olhar,  de ternura e compaixão.

Acordei em plena madrugada. Suava. Asfixiava.  Tentei erguer-me do leito de feno, mas eu me sentia pesado demais para qualquer esforço.  A minha garganta  ardia horrores e o meu ventre  dolorido contorcia-se involuntariamente. Quase  sufoquei no vômito, que era  uma torrente de  chumbo derretido.  Depois, aliviado, sucumbi ao sono e à lassidão. E, sobretudo, à  quentura reconfortante  que meu próprio corpo produzia.

Quando o calor me abandonou, deparei-me com a tragédia.  Meus irmãos jaziam, sem vida, abraçados uns aos outros, como costumavam dormir, porque sempre ávidos de calor.  Tinham os lábios roxos e os ventres inchados. No berço de palha trançada,  estava Louise.   Manchas escarlates distribuíam-se uniformemente  em seu rostinho de criancinha morta.  Fora ali que o meu pai afundara os dedos, para estancar-lhe o fluxo de vida. Depois, enforcou-se o meu pobre pai  numa  trave pendente do teto, próximo à lareira, que, nesta noite de Natal, sem resquício de hulha,  permanecera  vazia e silenciosa. 

Com letras típicas de um homem quase analfabeto, escrevera ele  um curto testamento, a lápis,  sobre o invólucro de um de nossos presentes.  Deixava o sapato novo – único bem que possuía – ao capataz que o demitira.